Primeiro ministro da saúde a visitar a AMB desde 2007, Ricardo Barros recebeu das mãos de Florentino Cardoso, presidente da AMB, uma carta com a visão da entidade sobre questões estruturais e estratégicas de longo prazo. O encontro aconteceu na sede da Associação Médica Brasileira, em São Paulo, e marca a retomada do diálogo do Ministério da Saúde com a categoria médica.
“O nosso objetivo é dar condições aos senhores médicos e profissionais da saúde, melhores condições de infraestrutura, insumos e equipamentos para que vocês pratiquem o melhor e com mais qualidade, atendimento às pessoas que necessitam dos serviços de saúde no Brasil”, disse o ministro no início da reunião.
O ministro afirmou que a participação dos médicos é fundamental para que os protocolos e diretrizes da saúde pública sejam atualizados com comprovação científica e permita elevar a qualidade da saúde pública, sem aumentar os gastos do governo. “Não estamos em um momento de gerar novos gastos, mas sim, de fazer mais com aquilo que temos. E eu vou fazer”, disse o ministro.
Florentino Cardoso mostrou a disposição da categoria em contribuir para a melhoria da qualidade da saúde no Brasil. Enfatizou que “saúde se faz com assistência, ensino, pesquisa e gestão” e concluiu: “temos expertise e não queremos nada em troca para contribuir, para fazer o melhor para a população brasileira”. Ele também enfatizou a visão da AMB: há necessidade de políticas de Estado, não de partidos e nem de governos.
Florentino criticou a falta de médicos na atenção básica: “Medicina de Saúde e Comunidade é uma especialidade e não se pode aceitar que o governo diga que a cada ano ou semestre este especialista possa ser trocado na comunidade em que atua, pois assim não terá o resultado esperado na atenção primária” exemplificou.
Representantes de mais de 30 sociedades de especialidades médicas participaram do encontro e tiveram a oportunidade de dialogar com o ministro e apresentar os principais problemas de cada especialidade.
Atento, o ministro Ricardo Barros comentou todas as questões e disse que irá colocar todos os temas na pauta para acompanhamento. Ele aceitou, inclusive, a sugestão de um dos médicos para retornar à AMB em quatro meses para apresentar aos médicos o que evoluiu após esse encontro.
O texto da carta entregue, na íntegra, se encontra abaixo.
“Excelentíssimo Senhor Ministro,
1. Recebemos vossa visita à Associação Médica Brasileira (AMB) com grande satisfação e nossos agradecimentos estendem-se ao seu staff.
2. Gostaríamos de aproveitar o momento para registrar que há muito tempo não recebemos um ministro da Saúde em nossa casa. Isso revela total distanciamento que os últimos governos fizeram questão de manter da classe médica brasileira. Simbolicamente, representa o desprezo que recentes governos e ministros da Saúde tinham pelos médicos brasileiros, por nossos posicionamentos, nosso conhecimento, experiência e contribuição. Por isso, não é nenhuma surpresa o verdadeiro desmonte que promoveram na saúde brasileira, nas contas públicas do país e o alto nível de corrupção. A maioria dos mais de 400 mil médicos brasileiros foram às ruas pedir impeachment da presidente da República. A AMB foi uma das primeiras entidades da sociedade civil organizada a apoiar publicamente o processo de impeachment, mesmo sabendo dos riscos.
3. Acreditamos que a visita de hoje marca o início de um novo tempo nas relações entre médicos brasileiros e Ministério da Saúde. Tempo de diálogo, tempo do foco nas questões mais importantes para melhoria da assistência à saúde da população brasileira, para que tenhamos mais políticas de estado na saúde e não somente políticas de governo ou de partido. Desafios enormes, especialmente se não melhorarmos financiamento e gestão.
4. Não é novidade a oposição feita pela AMB ao Programa Mais Médicos – PMM (símbolo do governo da presidente afastada), como foi criado: viés fortemente eleitoreiro, populista, em resposta às manifestações de 2013, partindo de pressupostos equivocados, difundindo estereótipos que macularam a imagem do médico e da medicina brasileira. O programa ficou estigmatizado entre os médicos: como a principal marca do governo da presidente afastada; não foram médicos para lugares mais longínquos (maior parte dos médicos está nas grandes cidades); é questionado por remeter divisas ao governo cubano; os médicos não foram avaliados em relação a conhecimentos, habilidades e atitudes, nem na fluência à nossa língua.
5. Imaginamos que conta com apoio de prefeitos e parlamentares única e exclusivamente porque é financiado pelo governo federal, desafogando o já sacrificado orçamento de prefeituras.
6. Não falamos em extinguir o programa Mais Médicos. Acreditamos haver grande oportunidade para evoluir em algo que realmente atenda aos municípios mais carentes, de difícil acesso e provimento, além de sanar danos ocasionados pelo governo afastado à medicina do país. Vossa Excelência pode mostrar à população e aos médicos que não há continuísmo e que busca na saúde, assim como o presidente Michel Temer está fazendo na economia, realizar mudanças estruturais e estratégicas que possam trazer um verdadeiro legado. Precisamos de saúde com qualidade.
7. A proposta é qualificar o Mais Médicos, aprimorando-o. Seria bom termos o Programa Mais Saúde, aproveitando a disposição da União em financiar a remuneração médica na atenção básica dos municípios menores, mais longínquos e mais pobres, buscando acesso com qualidade.
8. O Mais Saúde seria composto por médicos concursados para a Carreira Federal de Estado, notadamente por médicos especialistas em Medicina de Família e Comunidade, qualificados para demandas de saúde nos municípios. Com isso, evoluiríamos do programa atual com médicos recém-formados que apenas aceitam uma vaga para ganhar um bônus na prova de residência e passaríamos a ter no sistema uma assistência qualificada e definitiva. Sairíamos de um projeto meramente orçamentário para um projeto que realmente levasse a saúde a todos os cidadãos.
9. Será oportuno para o atual governo romper com a resistência e críticas que a classe médica tem em relação ao Mais Médicos e que a própria população tem do sistema de saúde. A avaliação sobre o SUS só piorou nos últimos três anos. Não haveria mais necessidade de submetermos grande parcela dos brasileiros ao atendimento de profissionais formados no exterior sem formal e adequada avaliação.
10. A implementação do programa poderia ser feita conforme recursos disponíveis já utilizados no PMM, sempre privilegiando cidades com perfis definidos. Como sugerimos progressão na carreira, a alocação inicial de médicos ficaria restrita a municípios menores, mais distantes e mais carentes. Isso realmente mudaria a qualidade da saúde nessas cidades. Estamos diante de uma oportunidade de criar uma ponte para a saúde, ligando a era do improviso à do planejamento e da segurança para prefeituras, pacientes e profissionais de saúde.
11. Não podemos continuar presos ao passado nefasto. É inaceitável, por exemplo, médicos que atendem hoje no programa sigam atuando como “intercambistas” ou “cooperados”, somente para que possam continuar no país sem a necessidade de revalidação dos seus diplomas. Não é possível mensurar qualidade no atendimento à saúde se não houver garantia de que o profissional foi avaliado adequadamente.
12. Exigência de qualidade vale não só para médicos estrangeiros que querem trabalhar no país, mas para todos os médicos brasileiros. É fundamental garantir que profissionais que atuam no Brasil tenham os mesmos requisitos mínimos de conhecimento e habilidades. Nessa linha, a AMB defende que estudantes de medicina no Brasil sejam também avaliados (anos 2, 4 e 6 do curso) e médicos brasileiros que já estão no mercado mantenham-se sempre atualizados. A medicina é a ciência em que o conhecimento cresce muito rapidamente.
13. A AMB possui um programa, o CNA, que visa estimular os médicos a se manterem em constante atualização. A cada cinco anos, cada profissional deve pontuar para que possa receber certificado de atualização. Seria importante que o Ministério da Saúde adotasse nossa experiência nesse sentido tanto no SUS como na saúde suplementar.
14. Ainda falando em formação dos médicos, não podemos deixar de lado os problemas advindos de outro braço do PMM: criação desenfreada e não planejada de novas escolas médicas. Na sua maioria, novas escolas e vagas de medicina foram criadas sem respeitar a necessidade de hospitais universitários, infraestrutura mínima e corpo docente adequado. A consequência é que são despejados no mercado profissionais recém-formados sem requisitos mínimos necessários para atuação responsável no sistema de saúde. Além de desumano com a população brasileira, é crítico quando pensamos no financiamento do SUS. Médicos malformados são ineficientes, inseguros e perdulários: pedem mais exames, internam pacientes sem necessidade, cometem mais erros, consomem mais medicamentos, realizam mais procedimentos de alto custo, enfim, sobrecarregam o sistema de forma desnecessária.
15. A avaliação dos alunos de medicina é uma questão tão óbvia quanto a avaliação dos estrangeiros. Saúde é nosso bem maior. Não é justo, tampouco responsável, que possamos submeter o povo a tamanho risco.
16. Não é possível diplomar como médicos estudantes que não atingiram uma avaliação mínima em exames regulares. Trairíamos a confiança dos pacientes, pois o título de médico que o profissional ostenta deve ser garantia para que eles sejam atendidos por médico com competência necessária para solucionar seus problemas de saúde.
17. Outro ponto importante que gostaríamos de deixar registrado nesta visita é sobre o conceito do nosso sistema de saúde. Atualmente, 25% da população brasileira gasta aproximadamente 250 bilhões de reais por ano com a saúde suplementar. Para os outros 75% da população que necessitam da saúde pública, o governo federal, estados e municípios gastam juntos apenas 212 bilhões de reais por ano (segundo informações do TCU). É notório que o modelo preconizado na Constituição Brasileira não se viabiliza com os recursos atualmente disponíveis.
18. Urge coragem para apontar alternativas ao financiamento ou repactuar com a sociedade o que será de responsabilidade do sistema de saúde. Hoje estamos numa espiral de ineficiência que nos levará ao colapso total no futuro próximo.
19. A Associação Médica Brasileira, desde sempre, tem por vocação o desenvolvimento do conhecimento científico. Um dos produtos resultantes dessa atuação é o Projeto Diretrizes, que tem por objetivo utilizar a medicina baseada em evidências científicas e melhores práticas reconhecidas mundialmente para atenção à saúde.
20. Já foi hábito a produção de diretrizes do Ministério da Saúde utilizando a experiência e o cabedal científico da AMB. Nos últimos governos, no entanto, devido ao forte viés ideológico da pasta pela qual Vossa Excelência é responsável agora, as diretrizes do ministério perderam o caráter científico e foram utilizadas como justificativa para programas e ações governamentais de tal forma que a parceria com a AMB ficou logicamente inviabilizada.
21. Demoramos muito para voltar a receber o ministro da Saúde na sede da AMB, embora esta casa sempre estivesse aberta para quem desejar discutir, debater e trabalhar pelo bem da saúde brasileira.
22. Foi muito importante a sua presença e acreditamos que a classe médica estará à disposição do Ministério da Saúde para construirmos uma saúde de qualidade. Em contrapartida, não queremos protagonismo, nem privilégios. Queremos apenas garantia de um diálogo aberto, honesto, sincero, transparente e verdadeiro.
23. Aguardamos retorno sobre as sugestões acima e reiteramos a disponibilidade da AMB para ajudar a construir dias melhores para a nossa população que tanto sofre, trabalhando em conjunto com o governo e desenvolver ações qualificadas necessárias à saúde.
Muitíssimo obrigado pela visita!
Atenciosamente,
Florentino Cardoso
Presidente Associação Médica Brasileira”