Um estudo apoiado pela FAPESP e publicado hoje (15/02) na revista Nature revelou
que o tecido adiposo secreta pequenas moléculas de RNA que caem na circulação
sanguínea e regulam, em tecidos distantes como o fígado, a expressão de genes
importantes para o metabolismo.
Em artigo publicado na Nature, pesquisadores mostram que pequenas moléculas de RNA liberadas pelos adipócitos na circulação regulam a expressão de genes-chave para o metabolismo em outros tecidos (Imagem: Adipócitos diferenciados em cultura e corados com reagente/Marcelo Mori)
Experimentos com camundongos mostraram que com o
envelhecimento a produção desses microRNAs no tecido adiposo tende a diminuir ”
fenômeno que, segundo os autores, parece estar associado ao desenvolvimento de
doenças comuns em idosos, como diabetes. A descoberta abre caminho para o
desenvolvimento de intervenções capazes de reverter o processo.
“De fato, intervenções nessa via podem ser bastante
promissoras no tratamento de doenças associadas ao envelhecimento e fazer com
que as pessoas vivam por mais tempo e de forma mais saudável”, afirmou Marcelo
Mori, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coautor do
artigo.
A pesquisa foi coordenada por Ronald Kahn, professor da
Harvard Medical School, nos Estados Unidos, com quem Mori iniciou uma
colaboração há cerca de nove anos, quando realizava o pós-doutorado.
“O grupo coordenado por Kahn estava interessado em entender
como o tecido adiposo poderia controlar determinados processos que contribuem
de maneira direta para o envelhecimento. Fizemos uma análise da expressão de
microRNAs no tecido adiposo de camundongos e notamos que, com o envelhecimento,
havia uma redução global na expressão dessas moléculas. Mas esse fenômeno
ocorria apenas no tecido adiposo e parecia estar associado à queda na expressão
de uma enzima conhecida como DICER”, contou o pesquisador.
Pertencente à família das nucleases, a enzima DICER é capaz
de cortar a molécula de RNA em pedaços menores, originando os microRNAs. Embora
não contenham informações para a tradução de proteínas, esses pedacinhos de RNA
desempenham uma função regulatória importante nas células, pois são capazes de
se ligar a moléculas de RNA mensageiro, podendo, por exemplo, inibir o processo
de tradução de uma proteína.
“Levantamos então a hipótese de que o tecido adiposo
secretava esses microRNAs na circulação para controlar a expressão de genes em
órgãos distais e isso, de certa forma, contribuía para a função endócrina do
tecido. Começamos uma série de experimentos para testar essa hipótese”, contou
Mori.
Lipodistrofia
Em um dos modelos, os pesquisadores silenciaram a expressão
da enzima DICER somente nos adipócitos de um grupo de camundongos. Os animais
então deixaram de produzir microRNAs no tecido adiposo (nos demais tecidos a
produção permaneceu normal) e desenvolveram distúrbios comuns em idosos, como
resistência à insulina. Também passaram a apresentar um risco aumentado de
morte prematura.
“Observamos que esses animais desenvolviam um fenótipo de
lipodistrofia parcial ” doença caracterizada por uma distribuição anormal de
gordura pelo corpo. É um fenótipo semelhante ao de humanos com lipodistrofia
parcial congênita e também de pessoas que desenvolvem essa condição em
decorrência do uso de medicamentos antirretrovirais”, contou Mori.
Os pesquisadores então descobriram que pacientes com Aids
que faziam uso de antirretrovirais também tinham diminuição na expressão de
DICER e na produção de microRNAs no tecido adiposo. Observaram ainda que tanto
pacientes com HIV em tratamento como portadores de lipodistrofia congênita têm
uma quantidade reduzida de microRNAs na circulação sanguínea.
Nos animais geneticamente modificados para não expressar
DICER nos adipócitos, foi observada uma redução de aproximadamente 80% na
quantidade de microRNAs presentes na circulação sanguínea em comparação aos
animais “selvagens” (sem modificação genética).
No experimento seguinte, os pesquisadores transplantaram o
tecido adiposo de um animal selvagem para outro que teve o gene codificador de
DICER nocauteado nos adipócitos. O teste foi feito tanto com tecido adiposo
marrom (cuja função principal é transformar a energia dos alimentos em calor),
como com tecido adiposo branco (que armazena a energia excedente consumida na
forma de triglicerídeos).
“Quando transplantamos o tecido adiposo marrom do animal
selvagem para o camundongo nocaute para DICER, o nível de microRNAs circulantes
aumentou, tornando-se equivalente ao do animal que doou o tecido. Observamos
efeito semelhante, porém com menor magnitude, quando transplantamos o tecido
adiposo branco”, contou Mori.
Na avaliação do pesquisador, o resultado representa uma
prova de conceito de que o tecido adiposo marrom é a principal fonte dos
microRNAs encontrados na circulação sanguínea.
“Muitos dos microRNAs que estavam diminuídos na circulação
dos pacientes com lipodistrofia também estavam diminuídos no sangue do animal
nocaute para DICER nos adipócitos. Isso sugere, portanto, que o mecanismo que
comprovamos existir em camundongos é conservado em humanos”, avaliou Mori.
O grupo observou ainda que o transplante de tecido adiposo
marrom reverteu nos animais nocaute características fenotípicas indesejadas,
como a intolerância à glicose.
Ação a distância
O passo seguinte da investigação foi comprovar que esses
microRNAs liberados pelo tecido adiposo na circulação de fato estavam
interferindo na expressão gênica de outros tecidos. Para isso, o grupo escolheu
como marcador a proteína FGF21 ” um fator de crescimento que controla várias
funções metabólicas, entre elas a sinalização por insulina, captação de glicose,
metabolismo lipídico e ingestão alimentar. Essa proteína é expressa
principalmente no fígado.
“Mostramos que a expressão de FGF21 nos animais nocaute para
DICER nos adipócitos está aumentada no fígado, assim como o nível desse fator
de crescimento na circulação. Ou seja, em decorrência da redução de microRNAs
especificamente em adipócitos, a produção desse fator de crescimento no fígado
não estava sendo inibida como ocorria nos animais selvagens”, explicou Mori.
Com auxílio de ferramentas de bioinformática, os
pesquisadores investigaram quais dos microRNAs secretados pelo tecido adiposo
poderiam ter como alvo o RNA mensageiro que codifica FGF21. Algumas moléculas
candidatas foram testadas em culturas de células humanas, entre elas o miR-99b.
“Na circulação sanguínea, os microRNAs costumam ser
encontrados principalmente nos exossomos ” pequenas vesículas secretadas pelas
células. Nós pegamos exossomos extraídos do sangue de animais selvagens e de
animais nocaute para DICER em adipócitos e incubamos com células hepáticas
humanas para ver o que acontecia com a expressão de FGF21″, contou Mori.
Enquanto os exossomos extraídos de animais selvagens
induziam uma significativa diminuição na expressão de FGF21, os exossomos dos
animais nocaute causavam uma queda muito mais discreta. No entanto, quando o
miR-99b era introduzido nos exossomos dos animais nocaute, esses passavam a
inibir FGF21 tanto quanto os dos animais selvagens.
“Os resultados sugerem que o miR-99b é secretado pelo tecido
adiposo em exossomos, cai na circulação e inibe, no fígado, a expressão de
FGF21. O que confirmamos posteriormente por meio de experimentos mais
elaborados em camundongos”, explicou o pesquisador.
Os efeitos para o organismo decorrentes do silenciamento de
FGF21 pelos microRNAs do tecido adiposo, bem como as alterações fenotípicas que
ocorrem quando essa regulação deixa de existir, serão um possível tema para
estudos futuros do grupo, contou Mori.
Outra possibilidade, segundo o pesquisador, é investigar a
relação entre a redução da expressão de microRNAs no tecido adiposo com a
obesidade. “Embora até agora esse não tenha sido o foco do trabalho, observamos
em um estudo feito em parceria com cientistas da Alemanha que em camundongos
obesos, mesmo jovens, há diminuição na expressão de DICER e na produção de
microRNAs no tecido adiposo. Entender essa relação, bem como descobrir de que
forma alterações metabólicas, restrição dietética e prática de exercícios
alteram esse mecanismo essencial é algo interessante para o futuro”, disse.
O artigo “Adipose-Derived Circulating miRNAs Regulate Gene
Expression in Other Tissues” pode ser lido em: http://www.nature.com/nature/journal/vaop/ncurrent/full/nature21365.html.
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