Por que tiros de arma de fogo acabam confundidos com outros tipos de ferimentos?

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Por que tiros de arma de fogo acabam confundidos com outros tipos de ferimentos?

Na virada do ano, a jornalista Marcia Mendel sentiu uma dor no pé esquerdo enquanto celebrava o Revéillon com sua família no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. No dia seguinte, ainda com dor, ela buscou o Hospital Copa D’or e recebeu um curativo para o que seria um corte. As dores persistiram e, em outra instituição, descobriu que a lesão era, na verdade, um ferimento causado por uma bala de fuzil.
Também durante o Revéillon, o garoto Arthur Silva, de cinco anos, morreu após ser atingido por uma bala perdida. O menino brincava no quintal quando caiu, desacordado. A família notou que ele tinha um ferimento na nuca, mas não imaginou que pudesse se tratar de um tiro.
Os casos não são inéditos. Em janeiro do ano passado, em Brasília, um garoto de 11 anos foi atingido por uma bala perdida no rosto sem saber, recebeu um curativo para o que seria um corte por caco de vidro e ficou com o projétil alojado no rosto por 17 horas.
Por que ferimentos a bala às vezes passam despercebidos” O diagnóstico nem sempre precisa de exames e pode ser feito apenas a partir da observação do médico. No entanto, em alguns casos, profissionais sem experiência ou capacitação, equipes desfalcadas no setor de emergência, falta de equipamentos hospitalares e a ausência de protocolos claros no atendimento emergencial alimentam uma cadeia de equívocos que pode acabar em erro médico.
“Não existe dificuldade de diagnóstico porque o relato do paciente auxilia o médico a compreender o caso, se é um assalto, cena de tiroteio ou outra situação. Mas há algumas dificuldades que são ligadas ao momento pela qual a saúde brasileira passa. Ela está subfinanciada, os equipamentos (hospitalares) estão sucateados, não estão disponíveis, o que impacta o diagnóstico”, afirma o cirurgião Lincoln Lopes Ferreira, presidente da Associação Médica Brasileira (AMB).

Feridas por armas de fogo
As lesões causadas por projéteis têm características específicas e não deveriam ser confundidas com outros tipos de ferimentos, explica Breno Caiafa, presidente da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular do Rio de Janeiro e cirurgião cardiovascular do Hospital Central da Polícia Militar.
Ao chegar na emergência do hospital, o paciente geralmente é atendido por um cirurgião geral, que irá ouvir a história e colher elementos para fazer o diagnóstico – por exemplo, uma pessoa que esteve próxima de área violenta ou presenciou um tiroteio tem grandes chances de ter sido ferida por bala.
E, mesmo que o paciente não saiba como se machucou, há características específicas da lesão por arma de fogo que permitem ao médico diagnosticar a origem do ferimento. “Normalmente, existe um orifício de entrada e um orifício de saída. No de entrada, há bordas da pele invertidas, o que mostra que houve uma contusão de fora para dentro. A dimensão (do orifício) é pequena, às vezes arredondada, e há lesões da pele causadas pelo projétil”, explica Caiafa.
Quando há orifício de saída da bala, a ferida tem dimensões maiores que a de entrada, sua forma é irregular e possui bordas evertidas – o que significa que a pele está projetada para fora, detalha o cirurgião.
No entanto, se o paciente lava, limpa ou faz curativos nas áreas afetadas, isso pode dificultar o diagnóstico clínico, que é aquele baseado apenas na observação do médico. Nessas situações, o profissional pode pedir diferentes exames, como radiografias simples, tomografia computadorizada e ultrassonografia, dependendo da região do corpo afetada, e oferecer o tratamento adequado.
O problema é que muitas vezes os médicos não têm a estrutura necessária para fazer os exames que poderiam salvar vidas. Em determinados casos, por falta de capacitação adequada, os profissionais não pedem os exames necessários para uma investigação mais profunda, o que acarreta em erros que podem ser fatais para o paciente.

Precarização da saúde
Eventos adversos em hospitais brasileiros, como erros dos profissionais de saúde, são a segunda maior causa de óbitos no país, responsáveis por 302.610 mortes em 2016, segundo números do Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, produzido pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em cooperação com o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS).
Para Ferreira, da AMB, a dificuldade de médicos em diagnosticar corretamente está relacionada a uma “precarização geral da saúde brasileira”, que vai desde a formação dos novos médicos às condições de trabalho enfrentadas por esses profissionais.
“Há um apagão. Os contratos, a remuneração e as condições de trabalho na saúde pública afastam os bons profissionais, e o excesso de escolas médicas sem qualidade afeta a formação dos novos médicos”, diz.
Falta de protocolos
A falta de protocolos claros para a atenção emergencial de pacientes com ferimentos por arma de fogo também dificulta a atuação dos médicos e resulta em um atendimento ruim, afirma Maria Manuela Alves dos Santos, presidente do Consórcio Brasileiro de Acreditação (CBA), que certifica hospitais brasileiros em parceria com a Joint Commission International.
“Nas salas de emergências, você não tem os processos bem desenhados. Se houver protocolos, médicos e enfermeiros podem fazer tratamento seguro”, afirma. “Emergência não é um serviço comum. Por isso precisa de regras e protocolos.”
Médicos, em sua formação, aprendem a identificar diferentes tipos de ferimentos em disciplinas como medicina legal e cirurgia geral – mas para que sejam assertivos no diagnóstico a diferentes tipos de lesões é necessária experiência. No entanto, argumenta Santos, faltam profissionais experientes e bem capacitados nas emergências.
“Há um problema que são profissionais jovens sem supervisão. O melhor médico de emergência é quem tem 10 a 20 anos de profissão”, diz. Sem profissionais experientes, o correto seria investir em treinamento e capacitação de jovens médicos. Mas Estados falidos e sem pagar salários – como o Rio de Janeiro – não têm a capacidade financeira para investimentos do tipo.
“O Rio de Janeiro tinha fama de ter as melhores emergências no país; as universidades públicas, como a UFF, eram famosas por isso. Isso foi há 20 ou 30 anos. Hospitais com ótimas emergências, como o (Hospital Municipal) Miguel Couto e o (Hospital) Getúlio Vargas, treinavam médicos americanos. Havia essa fama, mas o problema é que, se não houver investimento, como em qualquer área, isso acaba”, afirma.
Além do “apagão” da saúde, a onda de violência que assola o país, que registrou, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o recorde de 61.283 mortes violentas em 2016 – a maioria por arma de fogo -, também está transformando as salas de emergência e trazendo casos cada vez mais graves para dentro dos hospitais, o que desafia os profissionais de saúde.
“Nossas emergências estão ficando cada vez mais graves, e o que aparece é mais complexo agora. São complicadores extras”, diz Santos.
Para resolver dois problemas complexos e sistêmicos como saúde e segurança é preciso enfrentar questões crônicas dessas áreas, opina Ferreira, da AMB. “Há um crônico desfinanciamento da saúde, como se ninguém nunca fosse adoecer, ninguém nunca fosse precisar de um pronto-atendimento, como se fossemos sadios e imortais. É um círculo e acaba em resultados indesejados.”

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